Do abandono à reocupação: praça Raul Soares retoma sua identidade

Silvana Vevelt
By Silvana Vevelt

Da varanda dos bares Pirex e Palito, no 2º andar da Galeria São Vicente, a vista é a praça Raul Soares, um dos lugares mais emblemáticos de Belo Horizonte. Enquanto degusta o momento de lazer, quem frequenta os estabelecimentos tem a oportunidade de ter um olhar mais atento e detalhado para esse importante monumento, criando uma intimidade com a praça. Antes marginalizada e esquecida pelos moradores da cidade, a Raul Soares vem ganhando novos contornos e tendo seu espaço ressignificado com a abertura de estabelecimentos que levam os belo-horizontinos de volta ao seu entorno. Essa reocupação também se deve à escolha de muitas pessoas por morar na região, revertendo o cenário de abandono e retomando a identidade que a praça tinha nos seus primeiros anos de vida.

Embora seja um ponto de referência da capital mineira, já que a maior parte dos moradores de BH sabe dizer onde fica a praça Raul Soares, houve um tempo em que ela era apenas um lugar de passagem para quem cruza a cidade com passos apressados ou por quem trafega de carro pelas grandes avenidas que a atravessam. As fachadas abandonadas dos prédios antigos, a grande presença de moradores de rua e a violência da região fizeram com que a praça se tornasse um lugar pouco atrativo para moradores e para o lazer. Mas, nos últimos anos, seguindo a tendência de vários outros espaços do baixo centro de Belo Horizonte, o entorno da Raul Soares começou a vivenciar um processo de ocupação cultural.

Foi pelo carinho que tem pela região da praça, inclusive já tendo morado por ali, que Túlio D’angelo resolveu abrir a drinkeria Palito na Galeria São Vicente, antes conhecida somente por abrigar lojas de quinquilharias, utilidades para o lar e compra e venda de máquinas de costura. Até o ano passado, quem entrava na galeria usava os serviços desses comércios e ia embora. Agora, quem sobe a escada estreita para o segundo andar do prédio encontra um horizonte de lazer com a oportunidade de se sentar por ali e aproveitar uma vista privilegiada desse importante marco da capital mineira.

“A Raul Soares é surreal, de uma beleza indescritível, enfeitada pelas obras do Cura (Circuito Urbano de Arte). Cada dia ela está mais bem cuidada. Mais do que isso, apresenta a dicotomia da nossa cidade, a convivência entre o rico e o pobre. Digno dos grandes centros, é um respiro de arquitetura no seu estado da arte, por ela e pelos prédios à sua volta”, comenta um dos donos do bar, Túlio D’angelo. Em setembro deste ano, o Palito ganhou um vizinho, o bar Pirex, que cumpre o mesmo objetivo de reocupar um espaço importante para a cidade e que estava abandonado pela população.

“A gente conheceu o ponto por meio do Túlio, e foi exatamente a vista da Raul Soares, ao meio-dia, que fez a gente entender que ali era o lugar perfeito se a gente quisesse abrir um novo negócio. É uma vista muito exclusiva, é uma visão e um retrato da praça que é só estando ali naquele exato local que você vai ter aquela perspectiva. Também teve a questão de ser no centro da cidade. Como existe a varanda, a gente está respirando o ar puro, mas não diretamente na rua. É legal ver a cidade de um lugar diferente. E uma das coisas que pensamos foi justamente nesse movimento que está em curso em várias capitais e, aqui em Belo Horizonte, ele teve uma grande força com a abertura do Roça Grande, no centro da cidade, e do Mercado Novo. A gente entende que o centro é muito democrático. Tem essa coisa de ser um local viável para todos. Ele é acessível para todas as pessoas da cidade. Um motorista de Uber um dia nos disse que, com essas aberturas desses espaços no centro, eles estão trazendo mais pessoas para cá”, destaca Michele Matos, uma das sócias do Pirex.

História
A praça Raul Soares cumpriu muito bem seu papel social de espaço de convivência diversa até o fim da década de 60, quando passou de espaço glamoroso para marginalizado. Mas, para entender essa transformação, é preciso voltar à história da cidade. Planejada junto com Belo Horizonte e inaugurada só depois, em 1936, a praça era o principal ponto de encontro da juventude de Belo Horizonte, de quinta-feira a domingo. No entorno dela, funcionavam o Cine Candelária e o Clube Elite, casa de dança que atraía várias personalidades da capital mineira e pessoas de diferentes classes sociais. Isso ocorreu até o fim dos anos 60, quando a capital mineira começou a viver um processo de urbanização.

Recebendo quatro importantes avenidas que ligam várias regiões da cidade – Amazonas, Bias Fortes, Olegário Maciel e Augusto de Lima –, o espaço se tornou um lugar com movimentação intensa de veículos. O sistema viário foi priorizado, e o espaço ganhou status mais de rotatória do que de praça. Os pontos de ônibus que estavam no entorno da Raul Soares foram desativados. Tudo isso fez com que a região se tornasse um ambiente hostil para pedestres. A região também passou a ser um local desinteressante para se morar por causa das poluições sonora e ambiental e do abandono das ruas pelos moradores. Quadro propício para o aumento da violência. Marginalizada, a praça foi tomada também por moradores de rua.

“Na verdade, à medida que as grandes capitais e metrópoles vão crescendo, vai ocorrendo esse esvaziamento. A cidade começa a ter novas centralidades. Foram se destacando áreas residenciais, e os imóveis no centro não se adéquam mais a um perfil de moradores. Tem imóveis muito grandes que são difíceis de manter, e muitos deles não têm garagem. Isso tudo provocou o abandono, inclusive de prédios famosos que nós temos na cidade”, explica o diretor de Patrimônio Cultural e Arquivo Público da Fundação Municipal de Cultura, Guilherme Maciel Araújo.

Para ele, a recente reocupação desses prédios só ocorreu porque atualmente existem “novos modos de morar”. “As pessoas, às vezes, não querem garagem, não têm automóvel, mas querem uma área central para morar e andar a pé. Existe um movimento da sociedade pela busca desses espaços, porém nem sempre eles estão preparados para receber essas pessoas, por não não estarem qualificados ou reformados. O poder público tem a missão de incentivar, restaurando os espaços públicos para que esse uso residencial seja cada vez maior”, destaca.

A opinião dele é compartilhada pelo professor de arquitetura e urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Flávio de Lemos Carsalade. “Sabemos que a ausência de moradias facilita o aumento da violência urbana, pois os moradores são os ‘olhos da rua’. Nesse quesito, apesar da redução de moradias na área central, BH continua com vários prédios residenciais nessa área. Os urbanistas têm estimulado o uso dos espaços públicos e o aumento de moradias na região, bem como o chamado ‘retrofit’ (revitalização de prédios antigos) para ocupar prédios ociosos, nas suas práticas e leis, como o atual Plano Diretor. Tudo isso contribui para uma cidade mais equilibrada e ambientalmente mais qualificada. Se os lugares são utilizados amplamente pela população, não há problema de convivência de pessoas das mais diversas camadas sociais, e diminui-se muito a necessidade de uma vigilância ostensiva”, afirma.

Foi justamente essa facilidade de ir trabalhar e estudar a pé que fez com que o universitário Felipe Andrade, de 24 anos, optasse por morar na região da Raul Soares. “Eu vim do interior e morava na Pampulha, mas acabava gastando muito com transporte. Agora, morando na região central, ficou tudo mais fácil. Eu faço tudo a pé. De vez em quando, eu sento na praça para descansar um pouco. Eu sou estudante de história, então eu gosto muito dessa região da cidade, de apreciar os imóveis antigos. Fico feliz que estejam abrindo bares aqui, trazendo mais gente pra região, valorizando e diminuindo a violência”, analisa.

A reocupação da praça não visa retomar as mesmas características dos anos 30 e 40, já que as lógicas urbanas foram completamente alteradas. Porém, como bem diz o dono do bar Palito, é possível devolver um pouco do glamour que a praça tinha nessa época, mas sem excluir as diversas camadas sociais que hoje convivem na praça, criando uma convivência entre os moradores de rua e os demais moradores da cidade. “Toda metrópole teve sua decadência na região central. No entanto, a história, a beleza arquitetônica, as pessoas, a facilidade de locomoção, tudo faz com que possamos novamente recuperar esse glamour. Sem deixar de lado a estética também urbanoide e clandestina que acrescenta um quê a mais na experiência”, conclui Túlio D’angelo.

 

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